A biblioteca

Foi ali que li meu primeiro livro de mais de 200 páginas, aos 8 anos, me sentindo vitoriosa e, pela primeira vez na vida, especial. Foi ali também que, anos mais tarde, descobri O Senhor dos Anéis, O Mundo de Sofia, e tantas outras histórias, que aprendi sobre a necessidade do silêncio que as palavras proporcionam. Foi ali também que parei de visitar quando pude começar a comprar o que antes só pegava emprestado.

Voltei 20 anos depois, assustada com a velocidade do tempo, da tecnologia, da brevidade da vida. Voltei para doar meus excessos na esperança de que preenchessem vazios de outras pessoas.

A imagem que eu tinha até então – muito vívida, inclusive – era de umas três fileiras de prateleiras só de livros de leitura, de um lance de quatro ou cinco degraus que davam acesso a um lugar bem maior, cheio de bancadas e bancos de madeira posicionados de modo a permitir que a pessoa que buscasse conhecimento se dirigisse à pessoa que lhe entregaria o conhecimento em forma de papel, enciclopédia, livros didáticos.

A imagem que tenho agora é de um lugar abandonado, de um silêncio morto, de tristeza no olhar dos dois funcionários que mantém aquela estrutura com uma prateleira em pé no meio de um deserto em plena cidade.

Choque.

Era só deixar os livros ali que a bibliotecária arrumaria depois do almoço e veria o que servia para aquela biblioteca e o que poderia distribuir para outras.

Simpático, amistoso.

Mostrou, com alegria, como os livros ficavam expostos, para chamar a atenção de qualquer um que entrasse. Rosa Montero, livros infantis, autoajuda famosinhos, uns coloridos posicionados estrategicamente para se destacarem em meio ao preto e branco ao redor.

O outro sorriu, passos mostrando calorosas boas-vindas, curioso sobre a pilha que estava sobre a mesa.

Outro choque.

Os livros estavam todos novinhos, como isso poderia ser? O não dito pronunciou: não temos o costume de receber qualquer coisa além de páginas faltando, lombadas descoladas e ninhos de traça em alguma parte da lombada descolada.

Vivem da doação da população, acrescentou em som audível o primeiro, pois comprar é impossível. Contribuição é alegria no coração.

Não, não quero deixar meu nome, disse eu para os dois; caridade real não precisa ser divulgada, disse para mim mesma.

(É, acho que agora deixou de ser caridade.)

Um nó no peito nos passos lentos em direção à saída; a voz da minha mãe no ouvido direito: você viu o estado da biblioteca?

Ela também ficou em choque.

Quem apresenta um mundo assim à filha não entende quando ele definha na mesma proporção que o mundo fora dele.

Ficamos as duas assim, no silêncio pensativo e cheio de culpa daquelas que contribuíram para o abandono sepulcral.

E o silêncio persistiu até agora, quando resolveu se abrir para pouco mais de 200 pessoas que recebem minhas palavras. Um sentimento de afeto doído e vontade de mudar, enquanto caixas da Amazon chegam porque três livros saíram por 45 reais, quando apenas um deles, geralmente, custa 46.

Morada

Depois de 6567 anos, voltei! Não sei nem por que parei de postar, para ser sincera. A vida às vezes é abstrata demais para sabermos o motivo de tudo. O que importa é que estou aqui novamente e, desta vez, vocês lerão um texto que produzi na minha live de segunda-feira, 11/07, lá na Twitch. Fiz pequenas edições relacionadas a gramática, mas o texto está basicamente em seu formato cru. Eu roubei a prompt do livro Sorrow and Bliss, em que a protagonista faz um exercício de escrita que consiste em começar cada frase com uma letra diferente, na ordem em que aparecem no alfabeto. Aliás, é um ótimo exercício para quem quiser tentar por aí também!


Árvore da vida, indicadora de crescimento, de frutos. Borrado é o sentimento que deixa quando se vai. Cortada pela raiz, ela chora em forma de folhas que caem, que logo vão ser varridas depressa por algum funcionário que só faz aquilo porque precisa comer. Desejos um desses funcionário tem muitos, inclusive de que a árvore fique em pé, que seja sombra para os dias incansavelmente quentes. Eleva o tom da voz enquanto uma canção de ninar dança para fora da boca seca; fatigado está de ter de cantar para a morte. Gestos como esses não são comuns dentre os trabalhadores-matadores, dos destruidores que querem vida em troca. Homenagem nenhuma prestam, rindo, até, do homem que deixa algumas lágrimas caírem ao tocar o solo onde a árvore estava ainda há pouco. Instantes; a vida e a morte sempre separadas por instantes. Jazigos tentam transformá-las na mesma coisa, dizer que o fim é uma continuação em forma de adubo. Lamentam. Mentem para si mesmos, acreditam que as pessoas que se transformam em comida de árvore não são privadas da imortalidade quando o machado atinge o tronco. Negam até os últimos dias que são decadência. Ouvem os pássaros migrando e dão graças a Deus (que Deus?) por não serem mais infernizados por cantorias durante o expediente. Pescam e pecam, depois pedem perdão ao padre. Quanta ilusão! Rapidamente se esquecem, saem rindo e prontos para mais. Solidão é o que sente o homem que varre as folhas, que chora ao se lembrar da árvore sob a qual se sentava quando criança. Tinham tudo, tudo! União do útil ao agradável. Valia a pena, disseram os homens então, trocar aquela mata toda por edifícios. Xeque-mate, arremataram os milionários; zanzaram como zumbis os funcionários.

E Carlos, o não-zumbi, é o único que sente, enquanto segura a folha em forma de coração que restou do majestoso pulmão de sua morada.

Heroína

Este texto foi escrito no sprint de escrita no meu canal da Twitch em 20/01/2022. Não me lembro mais da prompt, pra variar, mas *acho* que tem algo a ver com a primeira frase. É interessante notar que a maioria dos textos que escrevo por lá são quase que esboços, não necessariamente contos; que poderiam virar romances se eu soubesse escrever romances. Enfim, fiquem aí com a história que estou chamando de Heroína. Não fiz edição nenhuma desde que a escrevi.

Só a encontraram depois de 6 dias. 6 dias.

Ninguém deu falta dela a não ser ele e o pai que, ironicamente, aparecera depois de 20 anos longe da filha. Descobriu que ela se hospedara em um hotel 3 estrelas da cidade, mas não fazia ideia do porquê. Afinal, para que ela iria pagar uma diária se tinha a própria casa?

E os donos do hotel só notaram que a placa de “Não perturbe” estava ali há seis dias quando uma camareira disse que ainda não havia conseguido limpar o quarto da hóspede do 205.

Entraram, por fim, para encontrá-la sem vida no chão, os pulsos cortados, o sangue já seco sobre o carpete, o rosto aliviado como o de alguém que finalmente encontrou paz.

Poucos sabiam, mas ela não era heroína porque queria; era a sina dela.

Ela simplesmente não conseguia ignorar os pedidos de ajuda, os clamores por socorro, as vozes que gritavam dentro da cabeça dela.

Ninguém nunca soube, no entanto, que era isso que ela fazia; que ela salvava as pessoas de situações que iam ocorrer no futuro, de perigos, de mortes trágicas causadas por coisas simples.

A última pessoa a ser salva, inclusive, achou que ela estava tentando roubá-la, quando, na verdade, ela havia acabado de salvá-la de um assaltante armado que lhe custaria a vida.

Era assim mesmo com essas pessoas ingratas.

E era isso o que mais a deixava inquieta, o que mais a fazia se sentir como se tivesse uma maldição em vez de um dom.

Ele sabia disso, porque, em um passado distante, havia sido amigo dela.

Haviam sido amigos até ela descobrir quem ele realmente era. O manipulador, o causador de todos os problemas que ela tentava evitar.

Como amigos eles tinham sido muito bons juntos, mas como inimigos eram ainda melhores. Ele sentia que complicava cada ação apenas para desafiá-la, o que o tornava cada vez mais proficiente em suas habilidades de transformar tudo em caos.

Ele percebeu que havia algo errado quando notou que ela não tentou impedi-lo de dar um golpe de 50 mil reais em uma pessoa ingênua. Ele foi em frente com o golpe e teve sucesso, mas ficou se perguntando o que havia dado de errado para ela.

Depois, sequestrou um cachorro em busca da recompensa gorda que sabia que viria, mas ela também pareceu não se importar. Então, no terceiro dia, ele ligou para o pai dela e foi assim que a encontraram no hotel.

Agora ele via o corpo dela e quase se arrependia de tudo pelo qual a fez passar. Com certeza ele havia sido parte do problema. Será que algum dia ele conseguiria se retratar de alguma forma?

Parar com o crime seria o caminho mais fácil, mas ele sabia que não conseguiria. Da mesma forma que ela era atraída para os casos de salvamento, ele era atraído para aqueles em quem conseguiria passar a perna. Mas, talvez, agora que ela não existia mais, ele não tivesse mais tanta vontade assim de fazer nada elaborado. Talvez ele fosse descuidado em alguns momentos. Talvez, em algum desses momentos, fosse pego pela polícia.

Talvez, de certa forma, ela ainda fosse a heroína daquela sociedade específica.

É fogo

O texto abaixo não era para ser publicado aqui hoje, pois ainda nem postei todos os que produzi em janeiro e minha intenção era que ficassem em ordem cronológica. Porém, hoje presenciei dois negacionistas/teoristas da conspiração conversando por menos de um minuto e gritei em pensamento: O SER HUMANO TEM DE SER EXTINTO! Como isso está diretamente relacionado ao esboço que escrevi na live do último domingo, decidi quebrar todas as minhas regras e publicá-lo como forma de desabafo.


Enquanto o fogo derrete as pessoas, ela ri; gargalha.

É um som de desespero profundo porque ela não consegue mais chorar.

Ela avisou, eles não escutaram.

— Não elejam essa merda de presidente! — ela gritava.

Chacoalhava as pessoas na rua, fazia pontos de educação sobre política e educação sobre educação. Nem todo mundo entendia que fazer mal ao outro é ruim, que controlar os corpos e querer que todes vivam a verdade de alguns é se equiparar a Deus ou a qualquer entidade que entendam por Criadora. Nem todes nasceram para ser humanos, mesmo que sejam.

Por isso mesmo é que ela tentava ajudar, mas só teve sucesso em alguns casos.

O pior aconteceu, mesmo depois de todo o esforço: o Merda ganhou.

O primeiro decreto do Merda foi a proibição da livre fala. Se alguém era pego falando sobre política, era imediatamente preso.

E torturado.

Algumas pessoas só então viam que aquela história de “não houve ditadura” era uma falácia, pois tiveram que viver na pele tudo aquilo pelo qual seus antepassados passaram e contra o qual lutaram para que não se repetisse. Descobriam, após alguns choques em seus corpos nus, que haviam falhado como seres humanos simplesmente por não terem ouvido.

Houve um período de calmaria depois disso, em que, por ninguém emitir opinião em lugar nenhum, a única coisa que se via nas ruas era uma multidão de gente sorrindo — sorriso tão forçado que começaram a surgir clínicas de estética para mudar os lábios para um sorriso permanente.

E, então, ela teve uma visão: o Merda ia queimar a todes les que tinham um sorriso no rosto. Aquilo havia se tornado muito lugar-comum e ele estava entediado.

De casa em casa, então, ela ia, tentar alertar as mesmas pessoas que não a ouviram antes, mesmo com o medo persistente de que alguém iria denunciá-la a qualquer momento. Felizmente, as pessoas estavam muito preocupadas em sorrir para fazer uma ligação para o Centro de Controle de Pessoas Com Ideias. O sorriso congelado as impedia de articular as palavras propriamente e poderia haver alguns desentendimentos.

Foi com tristeza que, no dia ilustrado pela visão, ela partiu com uma mala e uma passagem de avião, seguida por ninguém.

E agora, no país a milhões de quilômetros de distância em que encontrou refúgio, ela assiste as notícias que estão em todos os canais: o apelidado de Presidente Louco fez os militares tacarem fogo em toda a população.

“Atenção, notícia de última hora!”, ela ouve a repórter na língua estrangeira falar.

O que mais pode ter acontecido que seja mais importante que um país inteiro ser levado às cinzas?

A repórter logo responde:

“Os militares, afetados pelos próprios atos, se voltaram contra o presidente. Atearam fogo nele também e, depois, atearam fogo em si mesmos. Isso significa que, agora, o Brasil está vazio no tocante a pessoas. Só restaram alguns animais. A ONU ainda não se pronunciou sobre o assunto.”

O choque começa pelas mãos e chega até o cérebro devagar, deixando-a completamente paralisada.

O Merda morreu.

O país pode renascer.

Tomara que a natureza tome conta e o deixe inabitável.

Talvez seja esse o real significado de florescimento.

Intimidade demais

Este texto foi escrito na live na Twitch de 08/01. Pra variar, não me lembro exatamente da prompt, mas estava relacionada ao Schwarzenegger ter salvado o mundo. Fiquem, então, com mais uma das coisas bizarras que minha cabeça inventa em 45 minutos.

Eu queria me esconder, mas é impossível. Lá vem aquele mala, cheio de pompa, achando que pode fazer o que quiser porque ele é homem e chefe e sei lá mais o quê. Ugh! Não dá pra entender como ninguém nunca repreende um cara desses!

Eu viro o rosto, tento procurar alguém com quem falar, mas todos estão em conversas sérias com seus respectivos interlocutores e não tenho como fugir; serei mesmo alvo do mala-sem-alça.

Dou um sorriso forçado quando ele chega perto, mas levo a taça de vinho com rapidez aos lábios para que ele não me dê um beijo no rosto. Pelo menos dessa vez dá certo, porque ele para no meio do caminho ao ver que estou demorando demais para parar de beber. Quando vejo que não há mais perigo, desço a taça e menciono um “esse vinho é muito bom!” para disfarçar.

— E então, como anda a vida?

Quem ele acha que é para saber da minha vida? Ele só sabe meu nome, quiçá nem isso.

— Vai muito bem, obrigada.

— E o namorado?

— Sou lésbica – respondo, mesmo que não seja verdade. Só quero que ele veja que há limites sobre as perguntas que se faz a desconhecidos.

— Ah… – ele parece mudar de ideia sobre o que falaria depois, e eu imagino que ele tenha algum tipo de script programado que nunca dá errado. Provavelmente fui a primeira a provar que há falhas no plano dele. – Como está a namorada, então?

Eu respiro fundo antes de responder.

— Bem, muito bem. Deve chegar aqui a qualquer instante. Ficou presa no trabalho e não pôde vir no começo.

— Então em breve vou conhecer a felizarda, que maravilhoso! Quem sabe a gente não pode ir se divertir depois daqui, hein? Nós três… acho que ia ser uma boa ideia. Conheço um lugar bem legal em que a gente podia ficar a sós.

Ele nem termina de falar e já sinto o vinho voltando pelo esôfago. Ia ser engraçado se eu vomitasse nele, mas não quero passar vergonha em frente a outras pessoas também.

O dedão que segura a bolsa de mão passeia inconscientemente pelo fecho, mas só agora me dei conta de que ele está fazendo isso desde que o fulano-que-se-acha-o-máximo chegou, como se dissesse: bom, acho que isso tudo já foi longe demais. O meu dedão está certo.

Coloco a taça de vinho na mesa ao lado para abrir a bolsa e aperto o botão do pequeno dispositivo assim que o encontro. Me sinto tão aliviada só por esse gesto que fico me perguntando por que não fiz isso antes.

Quando me viro, o ser inconveniente ainda está olhando para mim, com um sorriso prepotente do tamanho do mundo no rosto, provavelmente pensando que eu vou aceitar a proposta dele.

Meu sorriso também pega meu rosto inteiro nesse momento, mas o motivo é outro.

Na verdade, eu quase gargalho quando uma mão com uma arma chega ao lado da cabeça dele e atira bem na têmpora, fazendo-o cair para o lado.

As pessoas ao redor param para ver o que está acontecendo, mas, percebendo que não é nada além do comum, voltam para suas interessantes e importantes conversas.

— Obrigada, Arnold, – digo para o autômato à minha frente.

O robô apenas faz uma reverência antes de sair caminhando pelo mesmo caminho de onde veio.

Schwarzenegger foi mesmo um salvador quando resolveu inventar máquinas programadas para matar aqueles que julgam ter intimidade demais.

Recomeço

Escrevi o texto abaixo na live de 31/12/2021, lá na Twitch. Uma autoficção fora de época com base em uma prompt da qual já não me lembro, mas tinha a ver com realizar algo que prometeu no ano anterior antes do pôr do sol do dia 31.

Eu disse que nunca, nunca mais ia passar a virada do ano triste, assistindo aos fogos pela TV, enquanto eu poderia estar na praia, festejando com aquele monte de gente em Copacabana. Eu disse isso e nunca cumpri, pois a Covid chegou para dar risada da minha cara. Ela não só riu, como também sapateou em cima da minha coragem e vontade de viver. Nem em mim ela entrou (ainda bem), mas peguei a outra doença que ela transmite: desesperança.

Entro no ônibus — a primeira vez que faço isso em dois anos — e sinto o ar me faltar. Não é por conta da máscara, a pff2 tem boa respirabilidade, é por conta do grande passo que estou dando e é, também, pelo sol começando a se pôr e mudando a luminosidade dentro do ônibus. Meus olhos se enchem com a vastidão de cores, se derramam por trás dos óculos escuros que completam meu look de “ninguém conseguiria me identificar na rua”. Que bom. Ser vista chorando em locais públicos sempre foi um dos meus maiores medos.

Sento-me na poltrona que reservei ainda hoje pela manhã e rezo para que a do lado não tenha sido reservada de última hora. Passar 6 horas em pânico de pegar Covid da pessoa ao lado não vai ser muito legal. Ainda assim, considero isso melhor do que chorar a noite toda por nunca conseguir colocar meus planos em prática. Se eu morrer, pelo menos morrerei sabendo que tentei fazer o meu melhor para ser feliz em um mundo tão fodido.

Melhor pensar assim.

Fecho os olhos e penso se encostar a cabeça na janela é uma boa ideia. Provavelmente não. Então, me encosto no assento enquanto o reclino, depois viro a cabeça de lado para continuar vendo o pôr do sol. A transição do dia para a noite dura o mesmo tempo que a transição da minha consciência para minha inconsciência.

Quando acordo, estamos em uma parada. Temos ainda 15 minutos, aparentemente, e eu preciso esticar as pernas. Minha bexiga também não aguenta mais. Passo pelo motorista, que fuma na lateral do ônibus, e me pergunto se ele não tem medo de fumar tão próximo assim do tanque de combustível. Deixo esse pensamento se esvair enquanto corro para dentro do Graal lotado. Espero tempo o suficiente na fila do banheiro para acreditar que eu poderia molhar as calças, mas finalmente consigo ir.

Pronto! Aliviada, pernas esticadas, estou pronta para voltar a seguir viagem.

Saio para o estacionamento de ônibus e… cadê o meu?

Só tem um parado ali, mas ele veio de Itapecerica da Serra e está indo para sei lá onde. Definitivamente não é o ônibus que me trouxe até aqui.

Deixo a mochila cair dos ombros, me agacho no chão e… choro. Um choro com gosto, com tudo o que está acumulado dentro de mim, que vem enchendo meu peito nos últimos dois anos. Choro pelas perdas de vida em sentidos reais e metafóricos, choro por finalmente estar saindo de casa, choro por estar sozinha, choro por querer estar sozinha, choro pelo meu ônibus ter partido sem mim. O ônibus representa o que sempre acontece comigo em todas as ocasiões: sou sempre deixada para trás. É isso o que dói, de fato. Será que algum dia deixarei de ser invisível ou um mero passatempo?

— Perdeu seu ônibus também? – diz uma voz ligada a pernas que param do meu lado.

Olho para cima e vejo uma moça exalando a fumaça do cigarro que carrega aceso em uma das mãos. Eu odeio cigarro e odeio fumar passivamente, mas, nessa situação, não tenho muita escolha.

— Aham – murmuro, meio que sem saber se quero a presença dessa pessoa justamente nesse momento.

— Para onde você tá indo? Eu consegui uma carona com um cara bem legal que conheci na fila do restaurante e, aparentemente, ainda cabe mais duas pessoas no carro.

— Tô indo pro Rio — respondo antes de me dar conta. Estou tão desesperada assim para pegar carona com desconhecidos?

— Então acho que fechou. É pra onde a gente tá indo também. A gente racha a gasolina depois e fica tudo certo.

Racionalmente, eu sei que seria mais seguro eu ir até um guichê da companhia de ônibus e comprar outra passagem, mas algo dentro de mim me diz que eu estaria fazendo a escolha errada. Afinal, como é que alguém quer ser feliz sem correr riscos, sem sair da bolha certinha em que se envolveu e a qual nunca conseguiu furar?

Me levanto, estendo a mão em direção a mão oposta da moça e a aperto.

— Meu nome é Clarice. Obrigada por não me deixar para trás.

A moça sorri de modo sincero.

— Amanda. — ela aperta minha mão de volta — Enquanto eu for viva, ninguém nunca vai ficar pra trás. Acho que essa é a minha missão, sabe? Gosto que as pessoas saibam que não estão sozinhas.

A fala dela quase me faz voltar a chorar e eu tenho uma vontade imensa de abraçá-la. Mas me contenho, lógico; já não chega aquela vez em que praticamente pedi um beijo no rosto para uma mulher desconhecida na estação de metrô. Não quero passar por tamanha vergonha de novo.

Então, apenas retribuo o sorriso dela, talvez com um pouco mais de dentes do que o que tinha tido a intenção de mostrar, mas tudo bem.

Ainda não é um ano novo, mas já sinto que é um recomeço. Talvez eu saiba me adaptar ao mundo novamente. Talvez eu possa voltar a ser feliz.

Um passo adiante

Dando continuidade às publicações dos minicontos que produzo durante os sprints de escrita que faço na Twitch, apresento a vocês o que surgiu a partir do trecho abaixo, tirado de uma música da Marina Sena.
Originalmente escrito em 27/12/2021.

Vivo em tela viva

Tela de cara e coragem

Solta esse seu muro

E põe os pés nessa viagem

Todos os dias. Ele a observava todos os dias.

Parecia estranho, mas ela parecia acompanhá-lo. Os olhos nos dele, um sorriso meio malicioso nos lábios e as bochechas um pouco coradas que, em alguns dias, pareciam mais rosadas do que em outros. Talvez fosse a luz.

Ele nem entendia essa paixão repentina, esse magnetismo. Ele nunca se apaixonara (pelo menos não dessa forma). O fato de ela retribuir o olhar o transformava em um ser menos ou mais estranho?

O que faltava era a coragem para dar um passo adiante, saber mais. Ele ansiava por ela e a temia na mesma proporção. Misteriosa seria um adjetivo bom para descrevê-la.

Ele teve a impressão, um dia, de que ela abrira a boca para dizer algo, mas ele piscou e a boca estava novamente fechada. Será que ela também o temia?

Bom, agora era a hora certa para descobrir. Ninguém estava ao seu redor e, mesmo que estivesse, a luz era fraca demais para que vissem ou ouvissem qualquer coisa.

Ele sorriu para ela, a coragem finalmente enchendo seu peito. O sorriso dela se tornou um pouco mais malicioso, a sobrancelha direita se arqueou.

— Eu achei que você nunca daria o próximo passo — disse ela finalmente. A voz era suave, encantadora.

— Eu não sabia se era coisa da minha cabeça ou se… — ele deixou a frase terminar assim, pois sabia que ela entendia.

— Eu me chamo Ana, mas acho que você já sabe – ela riu, parecendo um pouco encabulada.

— É, eu andei dando uma pesquisada. – Desta vez foi ele quem sorriu sem graça.

— Então você sabe que eu…

— Sim, eu sei. Você é uma incógnita para todos os que já te procuraram. Tem uma lista maior de gente que já procurou saber de você do que de pessoas que têm qualquer ideia de quem você é.

— É que poucos têm coragem de ir até o fim. Se perdem no meio do caminho, acham que eu não valho a pena. Não querem ser levados à loucura por minha causa.

Ele olhou para os próprios pés ao ouvir isso. Teria ele a coragem que os outros não tiveram? Se ele estava aqui, provavelmente significava que sim. Estava na hora de começar a viver um pouco, afinal.

— E o que eu tenho de fazer para ser diferente dos outros?

— É só me dar a mão.

Ele esticou o braço sem nem pestanejar, e sua mão arrepiou-se de leve ao entrar em contato com a pele fria dela. Mas ele sorriu largamente quando, com mais alguns passos, conseguiu enganchar seu braço no dela.

Pisou na grama macia e percebeu que, no mundo dela, o céu lhe parecia tão azul quanto o céu de uma pintura.


No dia seguinte, o segurança do museu parou por alguns segundos em frente ao quadro e se deu conta de que, nos 11 anos em que trabalhava ali, nunca havia prestado atenção na pequena mancha que parecia ser a figura de um homem, bem ao longe, como se admirando a protagonista da cena. Ela, por sua vez, continuava ali, com seu sorriso malicioso parecendo convidar as pessoas do outro lado a se juntarem a ela. Para o quê, ele não sabia. Afinal, como uma mulher feita de mistura de tintas poderia convidar alguém para qualquer coisa que fosse?

Vou ser publicada na Faísca, Brasiiiil!

Oi, gente!
Hoje vim falar de coisa boa, mas, desculpem, não é TopTherm™.

No início de 2021, decidi ativar o modo “escritora que finalmente entendeu que vai ser rejeitada milhões de vezes antes de receber um sim” e dar um basta à autocomiseração ridícula que me afligia há uns bons dois anos.

A primeira coisa que fiz foi entrar no grupo de escritores ao qual eu tinha acesso por ser apoiadora da Revista Mafagafo. Minha cabeça já explodiu ali porque, nossa, quanta gente inteligente e disposta a ajudar!

Enfim, vamos adiantar um pouco para ninguém morrer de tédio.

Participei de uma maratona de Carnaval organizada por um dos membros, coisa que nunca tinha feito antes, e um texto escrito em 30 minutos me fez me sentir tão feliz, mas tão feliz, que falei: uau, realmente quero fazer isso para o resto da minha vida, mesmo que meus esforços não deem em nada.

Minha surpresa maior foi quando o Tom (organizador da maratona) leu meu miniconto e adorou, além de me incentivar a enviar o que tinha escrito para o próximo edital da Newsletter dessa mesma revista – a Faísca.

Trabalhei bastante no texto com o feedback dele e de outras pessoas que se disponibilizaram a me ler e, quando cliquei em “enviar” no site de submissão, foi um alívio dos grandes. Tinha vencido meu trauma-gerado-por-mim-mesma. Ao mesmo tempo, no entanto, pensava: seria esse meu primeiro não depois de ter aceitado que os nãos são inevitáveis, principalmente em algo tão subjetivo quanto a arte?*

Mas veio um sim. O meu primeiro sim.

Fiquei sem palavras, chorei de emoção (e não queria que ninguém visse, mas, infelizmente, meu pai viu), divulguei no Instagram… enfim, tudo isso para dizer que, quase um ano depois de toda aquela turbulência que senti, minha Faísca está indo para o mundo.

No dia 28/03, por volta das 12h, quem assina a Newsletter (gratuita) da Faísca vai receber um texto fantástico (no sentido de fantasioso, não de excelência) desta que vos escreve.

Para quem quiser ler em primeira mão, é só clicar aqui e assinar a Newsletter. Vale a pena continuar assinando, mesmo depois de me ler, porque as histórias que chegam por e-mail toda segunda-feira são incríveis!

Caso leiam e queiram compartilhar o que acharam, ficarei super feliz!

Um abraço e muito obrigada a todes que me acompanham e me apoiam! Vocês têm um lugar especial no meu coração ♥


*Sobre essa coisa toda de rejeição, ouvi um podcast com uma das minhas atrizes/pessoas preferidas – Annabeth Gish – que me ajudou muito a ter uma outra perspectiva e entender melhor minhas falhas. Para quem ouve bem em inglês, recomendo demais! (E o podcast inteiro é voltado para isso, basicamente, então fica aí a dica também para ouvir os outros episódios).

Sanhaço vermelho

O texto a seguir foi produzido na live de escrita de 27/12/21. Não me lembro da prompt, pra variar. (E parei para pensar ainda ontem que uso o feminino para me referir à palavra “prompt” enquanto muita gente usa o masculino. Divagação que nada tem a ver com o texto.)

O meio do deserto tinha sido um bom lugar para se morar, até que veio a tempestade de areia.

Aquela mesma, que matou meio milhão de pessoas no inverno de 2040, foi se arrastando ao longo dos estados até chegar no que antes era a floresta amazônica. Coincidentemente, era ali que ela morava.

Nunca fora de odiar pessoas, mas também não as queria superpróximas. É aquela história: nada contra, mas também nada a favor.

A tempestade, porém, fizera com que ela tivesse que juntar suas coisas com as dos vizinhos que moravam a um quilômetro de distância, e esses vizinhos também abrigavam outros vizinhos que moravam em lugares menos seguros. Ou seja, a mulher que passara 40 dos seus 62 anos vivendo sozinha agora tinha que descobrir como viver em sociedade novamente e, colocando seu orgulho de lado, precisava admitir que não era tão difícil assim. Aliás, a proximidade às vezes fazia muito bem.

No entanto, aquelas crianças chorando, os gatos pulando de um lado para o outro e o papagaio gritando com o cachorro, no meio da briga entre casais que estavam estressados por conta da tragédia, faziam com que ela quisesse arrancar os cabelos.

Se ao menos ela tivesse cabelos!

Ela saiu da pequena casa para tomar um ar, mas imediatamente se lembrou do motivo de não fazer isso frequentemente. A areia que entrou pelas narinas poderia arranhar seus pulmões de forma a reduzir sua vida em dez anos a cada dez minutos de exposição.

Ainda assim, o que ela não daria por 15 minutos do mais absoluto silêncio!

Sentou-se sobre a mureta do lado de fora e fechou os olhos. Imaginou-se de volta nos anos 1990 do século passado, nos arredores de sua casa de infância, em meio às árvores que farfalhavam e aos pássaros que cantavam todos os dias no mesmo horário. Às vezes, ela se sentava à beira do riacho que havia descoberto em uma de suas andanças e ficava inventando diálogos para os pássaros.

“Belo dia, não?”

Um dizia ao outro. E o outro:

“Está ótimo para fazer um ninho novo. O que acha?”

Um era vermelho; o outro, verde-oliva. Será que os sanhaços-de-fogo começariam uma nova família?

Ela riu dos devaneios, das memórias vívidas. Com aquela idade, não sabia que era esse o nome real dos pássaros. Naquela época, podia jurar que a espécie se chamava “assanhaço”, pois achava que era derivado da palavra “assanhado”.

Bons tempos, bons tempos.

Queria que as pessoas tivessem cuidado melhor do planeta.

Depois de um tempo, ela até se acostumara a morar no deserto, a viver sem água por dias, se adaptara ao novo normal. Ainda assim, às vezes tudo parecia um sonho, como se ela realmente tivesse ido parar em um universo paralelo acidentalmente em algum momento de sua juventude.

Era uma pena não ter como saber se isso realmente havia acontecido. Só sabia que provavelmente a mudança ocorrera naquele fatídico dia em que ela decidira deixar as pessoas para trás por ter se cansado delas. Até hoje se perguntava se havia tomado a decisão certa.

Respirou fundo; tossiu. Ainda valia a pena tomar essa golfada de ar, ainda que com ele viesse uma tonelada de areia. Ainda a acalmava.

Não quis abrir os olhos, não ainda. As memórias estavam boas, reconfortantes, e ela só queria aquele momento de paz.

Sentiu algo pingar sobre sua bochecha. Seria possível que teriam chuva depois de cinco anos?

Abriu os olhos e seu coração quase parou ao olhar para cima.

Um Sanhaço-de-fogo vermelho estava se equilibrando numa telha. Ela nem achou que aquilo fosse possível, mas ali estava ele. Seria um milagre?

Mais importante: será que ele chorava as perdas do passado também? Teria sido a lágrima dele que caíra sobre sua bochecha?

Se fosse ou não, aquela gota agora se fora, pois estava misturada com as muitas outras gotas que saíam pelos olhos dela.

Sonho peculiar

O texto a seguir foi produzido na minha live de escrita na Twitch de 27/12/21. Não lembro exatamente da prompt, mas tinha a ver com um folheto achado no chão e como ele mudou a vida do personagem. Fiquem, então, com um miniconto bem bizarro que saiu das vozes da minha cabeça.

Os últimos anos nos ensinaram duas coisas:

  1. Deixar para amanhã o que se pode fazer hoje é mais real do que um mero ditado popular;
  2. A raça humana é podre e não há mais salvação.

A mensagem me veio por um folheto de viagens jogado no chão, daqueles que as pessoas pegam por educação ao passar por uma pessoa na rua e, depois, jogam no lixo (ou pelo menos deveriam jogar). Foi o ato de me abaixar para jogá-lo, de fato, na lixeira, que mudou toda a minha vida. Foi ali que entendi que, se a covid (ou os antivaxxers) não haviam me levado até agora, era porque ainda não tinha realizado meu verdadeiro sonho, aquele que tinha desde criança.

A moça da agência de viagens ficou muito feliz; afinal, um lugar tão caro quanto a Antártica lhe daria uma gorda comissão, boa o suficiente para que ela não precisasse mais escolher para quais sobrinhos poderia dar um presente de Natal, nem se preocupar com o valor do hotel no qual seus pais iriam passar a noite de réveillon.

Mas, é claro, ela nem sonhava que minha jornada estaria apenas começando quando eu chegasse no polo gelado. Ela nem imaginava que minha missão era ir e não voltar mais.

Quando cheguei aqui, foi bem difícil de me acostumar com o frio. Eu achei que ia morrer no primeiro dia, isso porque eu estava com todas as roupas possíveis. A única coisa que faltava para ficar ainda mais protegido era ser comido por um urso polar. Isso, felizmente, não aconteceu.

A adaptação, no entanto, foi ficando cada vez mais fácil. A cada dia eu tirava uma peça; a cada dia eu chegava mais perto.

Eu observava com cuidado e anotava cada detalhe de sua vivência, onde eles dormiam, como eles nadavam, quanto tempo ficavam debaixo d’água, a que profundidade desciam, quem eram os predadores e onde esses predadores estavam.

Descobri que a casa dessas criaturas que me fascinavam era o mundo, assim como a minha. Um ponto em comum era uma alegria a mais para mim, já que éramos diferentes em praticamente tudo. Dormir em pé, por exemplo, foi uma grande dificuldade que tive no começo. Demorou para que percebesse que deixar os calcanhares em contato com o gelo, mas não os dedos, era o que mantinha minha temperatura corporal em um nível aceitável.

Aos poucos, também fui aprendendo a colocar a cabeça dentro do casaco de zíper de um jeito que não me causaria um baita de um torcicolo no dia seguinte.

A cada dia, fui descobrindo um fato a mais, um detalhe que me fazia ser cada vez mais aceito por eles, que me deixava chegar mais perto. O dia em que um deles me deixou tocar em sua asa foi um dos mais inesquecíveis da minha vida! Acho que foi ali que eles entenderam que eu estava ali para realizar um sonho porque, no dia seguinte, eu já mergulhava com eles em busca de peixes, e demorou apenas uma semana depois disso para que eu fizesse parte do grupo que dormia em conjunto para melhor aquecimento.

Hoje faz um ano que cheguei aqui e talvez seja a última vez que eu escreva neste diário. Afinal, pinguins não escrevem, e é a única coisa que me falta para deixar de ser humano de vez.