Texto produzido na live de escrita de 17/09, lá na Twitch. Preciso me lembrar de salvar os VODs porque já me esqueci de qual foi a prompt que levou a este texto. Enfim, espero que seja uma leitura agradável.
Aqui no paraíso é tudo muito simples.
Mas não se engane, não é simples no sentido de minimalista, mas sim no sentido de fácil entendimento. Depois que se morre, sem as limitações físicas de armazenamento do cérebro, a consciência consegue abranger mais e mais informações, de forma que nada é absurdo.
Por exemplo: os óculos que uso neste momento são apenas por mera estética; sempre achei que um objeto desses deixa as pessoas mais charmosas e com cara de inteligente. Muita gente já me enganou em vida, inclusive, justamente porque levei a primeira vista a sério e, por isso, tive de conviver com gente burra por muito tempo.
Enfim, não vou prorrogar muito a história porque a gôndola já está para passar.
Sim, aqui no céu nós podemos escolher o nosso ambiente e escolhi minha cidade preferida e mais bela de todas: Veneza.
Beleza, como você sabe, sempre foi algo que tive em alta estima durante os 55 anos em que vivi. Tentei ser consultor de moda uma vez, mas fui demitido porque meu gosto era muito “peculiar”. As pessoas achavam que falar “peculiar” me deixaria triste o suficiente para me tornar menos extravagante, mas sempre fui a favor de não dar ouvidos a ninguém que tentasse ditar quem eu era. Foi assim que morri feliz.
Ah! A gôndola está aqui!
Tenho de narrar assim porque, apesar de eu estar no seu sonho, duvido que você esteja vendo as mesmas imagens que eu.
— Vamos até o Brasil! — digo a ela, enquanto bato em sua lateral.
Eu sei, parece fantasioso, mas lembre-se do que eu disse no início: aqui o cérebro não existe e vemos que a fantasia é tão real quanto qualquer outra coisa.
Estamos agora passando debaixo de uma ponte e, por cima dessa ponte, alguns pinguins saltitam felizes em direção ao rio mais próximo. Até os pinguins conseguem inventar seu próprio mundo por aqui.
É claro que não necessariamente passamos um pelo mundo do outro, apenas nos cruzamos temporariamente porque, embora o espaço seja infinito, às vezes rola um certo congestionamento quando cada ser que morreu quer uma coisa diferente.
Para fazer justiça, o ser Onipotente decidiu criar o sistema em que os mundos colidem temporariamente, mas sem que um atrapalhe o caminho do outro. É lógico que essa decisão só foi tomada depois que um bacalhau comeu uma lagosta porque, por coincidência, a lagosta decidiu ir passear justamente na hora em que o Bacalhau disse: “quero comer uma lagosta”.
Foi um estrago muito grande que gerou muita falação nos dias seguintes, já que ninguém sabia explicar o que acontece com os seres quando eles morrem já depois de mortos. O próprio ser Onipotente se fingiu de morto na situação. Acho que ele não tinha esperanças de vencer qualquer argumento.
Mas vamos voltar ao assunto que interessa: descrever a paisagem ao meu redor. A gôndola faz uma leve curva e adentra uma floresta. É tudo muito bonito e cheio de cores, mesmo que sejam apenas vários tons diferentes de verde. Acima, bem acima, há um trilho de trem – e consequentemente um trem – que passa por cima das árvores. Lembra um pouco aquelas cenas de alguns filmes de Harry Potter, se quiser uma imagem mais precisa. Inclusive, um carro voador acaba de passar a alguns metros acima de mim.
Confesso que isso, para mim, já é loucura. Mesmo morto, não teria coragem de voar em um carro. Voar em um avião é uma coisa, mas carro não foi feito para isso! Vai que acontece alguma explosão no motor e eu morro de novo? O lado positivo, talvez, seria descobrir o que aconteceu com aquela lagosta.
A gôndola faz mais uma curva agora, mas um pouco mais íngreme, e a água do rio inteiro parece entrar no meu chinelo. Ainda bem que o sol está quente! Esse lugar é mesmo um deleite! Sempre que me dá vontade eu escolho que os dias fiquem como dias típicos de verão, para me lembrar dos tempos na Terra em que a piscina reinava durante o dia e as estrelas reinavam durante a noite. Lembro de uma estrela específica que, quando eu me deitava sobre o gramado, parecia piscar para mim. Sempre imaginei que fosse minha mãe, porque, no enterro dela, me lembro de ver apenas uma estrela no céu. Eu nunca tinha ido a um enterro à noite antes do dela. Tempos esquisitos aqueles em que tínhamos que enterrar os mortos pouco depois de a morte ser declarada.
Mas não quero me lembrar do fracasso do governo daquela época. O importante é que você saiba como são as coisas “aqui em cima”, se é que podemos chamar o infinito de “aqui em cima”. De forma que se assemelha mais ao que a mente humana consegue entender, é como se estivéssemos em uma outra dimensão, paralela à de vocês. Muito louco imaginar que muitos dos livros de ficção científica que li eram reais.
Meu apartamento, aliás, eu fiz questão de que fosse todo de vidro, pois assim consigo ter uma visão completa dos humanos quando estou de bom humor. E, claro, também guardo meu iate na garagem para os momentos em que me canso de andar de gôndola.
A floresta agora se abre e eu vejo que estou chegando ao meu destino. Pelo tempo que passei aqui te contando tudo isso, acredito que você também esteja chegando ao fim do seu sonho.
Tenha um bom dia, filho, e, quando se levantar da cama, diga à sua mãe que eu a amo.