Mágica

Este miniconto foi escrito durante uma de minhas lives de escrita na Twitch, em 03/11/21. A prompt era uma imagem de um cachorro salsicha, como se tivesse sido cortado em espiral e, à frente dele, uma casca de laranja, cortada no mesmo formato, com uma fada em cima. A viagem da imagem gerou a viagem do texto abaixo.

— Mas você é uma fada! Como assim, não consegue?

Ela deu um saltinho e trocou o pé de apoio.

— Aquela história da Cinderela ensinou tudo errado mesmo para vocês, né? Que saco! Eu não tenho vara de condão!

Ela trocou os pés com um saltinho de novo, só que, desta vez, os dois pés ficaram no ar antes que ela pousasse o esquerdo sobre a casca de laranja gigante. Desequilibrou-se levemente.

— Estou atrapalhando o seu treino de equilíbrio?

— Um pouco. Mas pode continuar falando.

O cachorro só não rosnou porque era dócil demais para isso.

— Você tem certeza que nenhum amigo seu consegue? Sei lá, de outra espécie, talvez?

— Vem cá, pra que você quer tanto voltar ao normal? Tá bonitinho assim, todo cortadinho. Nem dá pra ver seu intestino nem nada!

— A aparência não é a questão. O problema é que meus humanos não podem saber que eu fui até a terra dos gigantes! Eles vão me doar se descobrirem!

— E seria tão ruim assim?

A fada olhou de repente para a coleira dele, toda de pedrinhas, claramente reprovando o fato de ele ser de posse de alguém.

— Mas é claro que seria! Você obviamente nunca passou fome, né? Nem frio, nem ficou debaixo de tempestades porque ninguém queria que você entrasse nos lugares quentinhos e aconchegantes. Você provavelmente nunca nem mesmo apanhou…

A fada fechou a cara.

— Você não sabe nada sobre fadas MESMO! Eu sou sozinha. Estou sozinha desde que me expuls… – ela engoliu de repente o que ia falar.

O cachorro virou a cabeça, o olhar curioso.

— Então você não pode fazer mágica não porque não consegue, mas por que foi expulsa? Então você PODE me ajudar, só não quer.

A fada respirou fundo, deu mais um salto no ar, bateu as asas e foi pousando levemente na casca de laranja, sentando-se, por fim. O cachorro continuou em pé, agora um pouco mais esperançoso.

— É que… eu jurei que eu nunca iria fazer nada que pudesse me ligar às fadas desde que fui expulsa. Já que não queriam mais que eu fosse uma delas, então eu não seria por completo. Isso faz tanto tempo que eu acho que não sei mais usar os meus poderes. Mágica também é prática, sabe?

O cachorro pensou por um segundo antes de ele mesmo se sentar. Estando todo picotado, ficava um pouco difícil de fazer com que o corpo todo fizesse o mesmo movimento. Ele viu que a fada riu do desajeito dele.

— Deve ser mais ou menos como andar de bicicleta… – ele finalmente disse – os humanos costumam falar que, uma vez que se aprende, não tem como desaprender.

— E eles estão certos?

A fada dobrou as pernas e encaixou o queixo entre os joelhos.

— Acho que sim. Mas eu nunca andei de bicicleta pra saber.

Os dois ficaram em silêncio por um tempo, até que a fada falou tão baixo que o cachorro não teria ouvido se não estivesse prestando atenção.

— Se eu te ajudar… você me leva com você?

Os olhos dela eram esperançosos, assim como os dele haviam estado ao encontrá-la no lixão onde o gigante o descartara junto com a casca de laranja. Seria a esperança dele tão vã como a dela? Porque… como ele explicaria para os humanos que agora eles teriam uma nova moradora e ela era um ser que ninguém havia visto antes? Como explicar tudo isso se nem falar o idioma dos humanos ele sabia?

Sua respiração deve ter dito tudo, pois ele viu os olhos dela marejarem imediatamente.

Ela escondeu a cabeça entre os joelhos.

— Eu tô cansada de ficar sozinha. – a voz dela saía abafada entre os soluços agora audíveis.

Ele se apoiou nas quatro patas novamente e pulou para o lado dela na casca de laranja gigante, sem se importar que o resto do corpo só chegou alguns segundos depois. Usou, então, de seu único antídoto contra o sentimento de tristeza: cutucou-a com o focinho e, quando ela olhou, deu uma lambida que pegou o rosto dela inteiro.

Ela riu, surpresa, por entre as lágrimas.

— Você tem a sua mágica, eu tenho a minha. – explicou ele – E eu prometo te levar comigo se você conseguir colar meu corpo de volta.

— E se eu não conseguir?

— Te levo mesmo assim. Se os humanos me doarem, pelo menos sozinho eu não vou ficar.

Se cachorros sorrissem, ele estaria sorrindo agora. Quem diria que estar grudado em uma laranja no momento inoportuno em que o gigante decidiu descascá-la ia dar nisso?

Talvez ele devesse se aventurar para fora do mundo dos humanos mais vezes.

Publicado por Elaine Trevizan

Leitora assídua, tradutora, intérprete (sim, são duas coisas diferentes), bookstagrammer, escritora em construção. Hipérbole é meu nome do meio.

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