Texto produzido na live que fiz na Twitch em 10/10/2021. A prompt era para escrever um casal na casa dos 60 anos, um encontro às cegas e uma prisão (acho).
Não era comum que isso acontecesse no presídio; na verdade, talvez fosse a primeira vez. Mas ali estavam eles, jantando à luz de velas e… rindo. Como fazia falta rir com alguém!
Ele sabia que estava pagando por um crime que realmente cometera, mas, às vezes, queria ter a habilidade de voltar no tempo e dizer para o seu eu de 65 anos que não valia a pena lavar dinheiro, que era melhor se contentar com a aposentadoria, por menor que ela fosse.
Pegara a sentença máxima – 10 anos – porque, ainda por cima, havia sido colocado como laranja em um esquema extra. Ele não contara a ninguém que, antes do julgamento, vira um de seus sócios subornando o juiz para ter a sentença reduzida. Tinha aquela carta na manga, mas não iria utilizá-la. Que cada um arcasse com suas próprias escolhas e responsabilidades.
— Não acha que já fica sozinho demais com seus pensamentos para fazer isso agora também? — interrompeu a voz de Ana.
José sorriu meio sem graça, pois fora o assunto anterior que despertara todo esse fluxo de pensamento, por mais engraçado que tivesse sido contar sobre os cachorros correndo atrás dele enquanto ele fugia da polícia. Não queria que ela se sentisse mal por ter trazido o assunto à tona. Não que o lugar onde estavam pudesse NÃO lembrá-los do que havia acontecido, mas talvez isso pudesse fazê-la acordar para o fato de que, talvez, ele não valesse a pena.
— Só estava pensando que não é justo você desperdiçar tempo comigo. Eu ainda tenho 3 anos de pena, sabe?
A primeira resposta dela foi com o olhar: havia tanta ternura ali que José se perguntou se alguém, algum dia, já havia olhado para ele daquela forma. A segunda foi ainda mais forte:
— Eu passei minha vida toda esperando por você, o que são mais 3 anos?
Os olhos dele se encheram de lágrimas a ponto de quase transbordarem. Sua vida tinha sido uma sequência de erros completos, mas o primeiro deles fora ter ido embora quando quisera ficar. Ana nunca havia se declarado, mas ele, no fundo, sempre soubera. E, mesmo assim, deixara que o emprego falasse mais alto que o coração.
O dinheiro! Tudo sempre havia girado em torno do dinheiro!
Suas vidas, então, haviam tomado rumos distintos. Ela se casara e ele nunca mais ouvira falar dela. Isto é, até a noite de hoje.
Ele se engasgou um pouco antes de conseguir falar, e a voz saiu com dificuldade:
— A vida toda?
Ela balançou a cabeça, lágrimas enchendo os olhos dela também:
— Te amei como amigo quando éramos crianças; te amei como companheiro quando crescemos. Se tivesse tido coragem de te dizer antes, talvez…
Ele esticou a mão e colocou sobre a dela.
— Talvez eu continuasse sendo o que sou hoje. Talvez eu ainda tivesse cometido um crime. A nossa essência a gente não pode negar, Ana.
Ela concordou e sorriu um pouco por entre as lágrimas.
— Foi uma sorte eu ter te achado em meio a tanta gente, sabe? Digo, literalmente. Procurei em tantos presídios antes deste que já estava ficando sem esperanças.
— Como você conseguiu fazer tudo isso, aliás?
Ele gesticulou como se a cela estivesse toda enfeitada, mas a verdade é que estavam sentados sobre duas cadeiras de plástico e as velas eram de sétimo dia. Ainda assim, era muito para uma prisão.
— Digamos que cobrei alguns favores que me eram devidos.
Ela sorriu, maliciosa, mas não disse mais nada.
Ele colocou o pedaço de frango (o primeiro em um mês inteiro!) na boca e se concentrou no rosto dela, no leve sorriso que ela dava enquanto brincava com a comida no prato antes de levá-la à boca.
Ele queria perguntar mais, saber dos motivos que a levaram até ali, mas se limitou a sorrir também.
De repente, ele sentia uma certeza de que ainda haveria tempo. Tempo para responder às perguntas e tempo para ser feliz do jeito que conseguisse.