Apenas mais uma na multidão

Eu estou mega atrasada com a publicação desses exercícios que faço durante minhas lives na Twitch. Este texto é de 07/11/21 e um dos poucos que foram intitulados antes de virem para o blog. A prompt dessa vez foi uma imagem — um desenho feito pela @tinyowlreads de uma mulher sem rosto. Sem mais delongas, aqui está ele:

Apenas uma na multidão. Sem rosto, sem identidade. Será que toda a multidão da qual ela faz parte se sente assim também? Ela tem um rosto, um rosto que existe, um que ela vê todos os dias ao acordar e se deparar com o espelho ao lado da cama. É um rosto bonito, cheio de sardas que, apesar de muitos acharem estranhas, ela ama. É meio que sua marca registrada, o ponto pelo qual ela é reconhecida em qualquer lugar que vai. “A menina das sardinhas”, dizem, quando querem ser engraçados. Mas ela não acha nada engraçado.

Ela quer ser vista, sim, mas sempre de forma positiva. E ela não quer ser vista para ter fama, ela quer ser vista para sentir que é importante. Não por todos, nem para todos, mas por alguém. Talvez por ‘alguéns’. Esse sentimento de não pertencer que ela tem em lugares lotados chega a ser estranho. Afinal, quando o mundo fica demais para ela, ela chora sozinha no metrô. Quer algo mais contraditório que isso?

Mas ela não é uma pessoa triste, apesar dos sentimentos narrados nesses dois últimos parágrafos. Ela é feliz como pode, do jeito dela, espalhando alegria por todos os lugares com seu sorriso que ilumina uma rua inteira, com seus cabelos escuros e lisos que não chegam aos ombros, ombros estes delineados pelos anos que passou praticando natação (bons tempos!), e com seus olhos tão castanhos que parecem até pretos para quem olha a qualquer distância maior que cinco centímetros. Mas de perto, bem de perto, pode-se ver que a parte da íris próxima à pupila é de um castanho claro, bem parecido com o da mãe. A mãe de olhos cor-de-mel de quem ela herdou quase tudo, geneticamente falando.

Ela sorri ao se lembrar da mãe, da facilidade com que a mãe ria de qualquer coisa que ela dizia, e de como os olhos da mãe sorriam quando ela, a pessoa invisível no meio da multidão, gargalhava. O pensamento faz as lágrimas que ela achava que estavam longe de ir embora secarem momentaneamente.

Para a mãe ela nunca fora invisível, e talvez fosse isso que importasse de fato.

Olhando com atenção agora através da janela do metrô, ela percebe que sua estação já está próxima. Ela balança a cabeça rapidamente, tentando espantar todos os pensamentos melancólicos que esses vagões sacolejantes lhe trouxeram, lembrando-se de que, talvez, viver em São Paulo tenha um pouco dessas questões: ser sozinha às 18h de um dia de semana, junto a 100 mil pessoas; sentir-se triste ao pensar no capitalismo e no quanto as pessoas não se olham por estarem muito cansadas para qualquer coisa além de fechar os olhos ou se perderem em pensamentos; fazer parte da roda que gira e, ainda assim, sentir-se muito insignificante em meio a tudo.

Ela se levanta, pede licença apenas alto o suficiente para que as pessoas não pensem que ela é mal-educada, e esbarra sem querer em uma outra pessoa que teve exatamente a mesma ideia no mesmo exato segundo.

— Desculpa – os dois dizem ao mesmo tempo, sem graça, e, também ao mesmo tempo, se olham.

Os olhos dele são de um castanho claro, mas, ao olhar bem, vê-se que a parte da íris próxima à pupila é castanho-escuro.

Ambos sorriem e, por alguns instantes, analisam os olhos um do outro.

E, então, a porta do metrô se abre.

Na tentativa de sair antes que mais uma enxurrada de gente entre, o homem dos olhos castanhos-escuros-de-perto se perde no emaranhado de cabeças que seguem seus corpos em ritmo apressado.

E ela, mais uma vez, fica também perdida, sozinha, no meio da multidão.

Publicado por Elaine Trevizan

Leitora assídua, tradutora, intérprete (sim, são duas coisas diferentes), bookstagrammer, escritora em construção. Hipérbole é meu nome do meio.

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