De repente

Texto produzido na live de escrita de 28/09/21 lá na Twitch. A prompt era mais ou menos assim: “Um amigo te pediu para fazer um jogo na loteria e ele acabou ganhando. O que você faz?”

A gente sempre acha que está apenas brincando quando diz: “se você ganhar, uma parte é minha, hein?”, até o dia em que o impensável acontece: a pessoa realmente ganha na loteria.

Eu nunca achei que fosse ganancioso, até que me peguei pensando: “é, mas, se eu não tivesse ido fazer o jogo, ele não estaria milionário”.

Isso é verdade, mas, olhando pelo lado de que, hoje em dia, um milhão não dá para muita coisa além de comer mais carne no fim do mês, também fico com dó de cobrar.

Costumávamos brincar, quando éramos mais jovens, que 50% de toda brincadeira é verdade. Com a inflação, a porcentagem chegou a 90%. Isso quer dizer que sim, o Fernando sabia que teria de me dar parte da grana se ganhasse. É que acho que ele nunca acreditou de verdade que iria ganhar, né?

Isso é algo que nunca entendi: se a gente joga achando que vai perder, por que a gente joga?

Será que temos uma necessidade inata de provarmos que somos fracassados? E, para provar, gastamos o dinheiro que não temos e nos tornamos fracassados e falidos?

Muito esquisita essa coisa toda de pensamentos e desejos inconscientes.

O fato é que agora não sei como abordar o assunto. Ele me disse que ia à lotérica na semana que vem, então ainda tenho tempo, mas não posso simplesmente chegar e falar: fulano, quando você vai me fazer um Pix por ter ido fazer o jogo para você? Mesmo porque ele poderia entender como um valor simbólico pelo serviço prestado, não parte real do dinheiro. Um Pix de cinquenta mil reais não faria muita diferença e é possível que eu perdesse a amizade do Fernando.

As coisas já estão caras demais para eu ter que fazer outra poupança para comprar outro amigo. Fora que demoraria uns 10 anos até ter dinheiro para comprar um — de caráter duvidoso, ainda por cima.

É melhor ficar com esse mesmo.

Será que, pelo menos, ele vai me convidar para jantar qualquer dia? Eu não aguento mais comer salgadinho Fofura todos os dias! Lembro dos dias em que diziam que essas coisas eram “besteira”, que não eram comida de verdade, que o sódio adiantaria nosso iminente ataque cardíaco.

Pois, até agora, não morri. Tenho 35 anos e já superei em muito a expectativa de vida. Talvez os salgadinhos Fofura tenham sido minha salvação, no fim das contas.

Mas, mesmo assim, às vezes sinto falta de “comida de verdade”. Arroz, feijão, tomate, ovo frito… até carne me dá água na boca, mesmo sabendo que hoje ela está escassa e que não faz sentido comer animais em extinção.

Vou esperar, então, que ele me chame para o jantar. É isso.

Não vou pedir minha parte em dinheiro.

Está decidido.

É. Um jantar está de bom tamanho.

Qualquer um se contentaria com tamanho privilégio, não é mesmo?

Nem todos. Nem todos.

Mas eu me contento.

Minha perna inquieta, fazendo meu pé bater no chão, talvez discorde, mas é o que tenho para hoje.

Esperar por um jantar.

Será que é o fogo já aceso na boca do fogão que está me fazendo esquentar desse jeito?

Estou sentindo que vou entrar em ebulição a qualquer momento!

Levanto, tento andar, mas caio logo em seguida.

O celular pula do meu bolso e cai a uma distância apenas suficiente para que eu possa ver a tela acendendo e uma mensagem chegando.

Tento gritar, mas a dor no peito está muito forte e nem o ar sai direito pela minha boca.

A última coisa que vejo em vida é o texto: “Arnaldo, decidi te dar metade do dinheiro da loteria. Vamos na lotérica comigo pra retirar?”

Publicado por Elaine Trevizan

Leitora assídua, tradutora, intérprete (sim, são duas coisas diferentes), bookstagrammer, escritora em construção. Hipérbole é meu nome do meio.

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